DIA 252: Desejo de ajudar os outros e a resistência para me ajudar

quarta-feira, fevereiro 26, 2014 0 Comments A+ a-

Tenho-me apercebido deste fenómeno mental que é o de tentar resolver os problemas dos outros, ajudar os outros e eventualmente salvar os outros de um mal qualquer. Não deixa de ser interessante todo o processo mental de acreditar que o problema do outro é mais simples de resolver, ou até mesmo conseguir ver claramente o que é que o outro deve fazer para resolver o problema. Talvez seja com base neste vírus mental que a sociedade actual apresenta casos em que se espera ser salvo por alguém, ao mesmo tempo que nos sentimentos extremamente orgulhosos quando ajudamos alguém e somos tomados como "anjos".

Porque é que frequentemente somos capazes (de acordo com a nossa mente) resolver mais facilmente o problema que o outro apresente do que resolver os nossos próprios problemas? Será que acreditamos que conhecemos o outro melhor do que ele se conhece a si mesmo?

No meu caso, apercebi-me também que esta personalidade consegue tomar proporções extremas de me punir mentalmente quando não consigo ajudar o outro. Já não é tanto querer ajudar mas é o ego de ser reconhecido pelo outro, de cumprir uma missão, de fazer "o bem", de evitar a dissonância cognitiva entre aquilo que se acredita e o que se faz - no final de contas, trata-se de ter controlo sobre a vida da outra pessoa, o que é uma forma de poder ilusório. Seguramente, aquilo que se perde é o controlo da sua própria vida...

Pergunto-me: desde quando é que não ajudar o outro é um acto de egoísmo? Será que ajudar o outro sem se primeiro ajudar a si próprio não é um acto de desonestidade própria? Como é que se estabelece um equilíbrio de modo a não comprometer-se a própria vida quando se está sob o saviour syndrome?

Ultimamente tenho ponderado sobre estes pontos, especialmente quando se trata de ajudar os outros financeiramente. Convém antes de mais lembrar que, o dinheiro, ao contrário da cultura, não uma coisa que se dá sem se perder: quando se dá dinheiro a outra pessoa, fica-se sem ele. Seria interessante que o dinheiro tivesse a capacidade de se expandir e partilhar da mesma forma como a cultura e a educação passam de uns para os outros. Certamente que muitos problemas neste mundo deixariam de existir...

O outro fenómeno que se tem de ter em consideração é a noção do emprestadar, ou seja, a ilusão de que se vai reaver o dinheiro aparentemente emprestado. Uma ferramenta fundamental nestes casos é a comunicação para que ambas as partes estejam claras sobre o destino do dinheiro e da própria relação - as assumpções que um vai devolver o dinheiro pode não corresponder à vontade do outro e, por isso, se esta situação for planeada e discutida logo desde o princípio podem-se evitar surpresas desagradáveis.

O desejo de ajudar o outro tem uma polaridade: a negação de se ajudar a si próprio. Vejo que ajudar os outros pode facilmente tornar-se num hobbie ou mesmo numa distração para se evitar olhar para os próprios problemas dos quais cada um individuo é responsável.

Quanto à honestidade própria, será que emprestar-se dinheiro realmente ajuda o outro? Dar-se dinheiro a uma pessoa viciada no jogo irá provavelmente alimentar o vício. Dependendo da extensão do vício, negar-se essa ajuda pode ser realmente uma ajuda para a pessoa ver o ciclo que está a criar em si própria. Ao mesmo tempo, é óbvio que dar dinheiro num dia não vai resolver a origem do problema.
Aquando da minha estadia na Africa do Sul, deparei-me com um caso em que um mendigo me abordou de forma implacável e emocionalmente forte e, apesar de inicialmente eu acreditar que o podia ajudar, a situação acabou por envolver os seguranças do centro comercial e causou mais problemas para o mendigo e insegurança em mim. Com isto quero dizer que cada um de nós irá ter de inevitavelmente perceber que nenhuma destas atitudes serve para si próprio: nem a manipulação sentimental dos outros, nem o desejo de ajudar baseado na culpa de se ter mais do que o outro.

No que respeita ao sistema económico, para-se resolver um problema gigante será necessária uma solução em grande, que realmente garanta que cada ser humano tenha acesso aos recursos  necessários para uma vida digna (ver por exemplo Rendimento Básico Incondicional e o Rendimento de Vida).

Ao vermos que aju-dar nem sempre é o melhor remédio, podemo-nos questionar sobre o que é que é realmente honesto na relação com a outra pessoa?  Em vez de dizer o que o outro deve fazer ou ser, porque não sê-lo também e tornar-se num exemplo da eficácia de tal aplicação?

Cada um tem de se responsabilizar pelo que se passa dentro de si mesmo- o seu Processo de Vida.
Outra realização fundamental é a de perceber que nada na realidade individual de cada um vai mudar se a própria pessoa não mudar - e no que toca à mudança (de pensar, de ver as coisas), cada um só pode fazê-lo por si.

A relação que se tem para com o dinheiro e para com os outros reflecte a relação que se tem consigo próprio, e este é um novo ponto a investigar em mim.


Salvar os outros pode ser então um espelho da ideia que tenho de mim própria: a ideia de que preciso de ser salva de algo ou de alguém, a ideia que não sou capaz de resolver os meus problemas e que preciso que alguém os resolva por mim. Por isso, apesar de saber aquilo que tenho de resolver em mim, é aparentemente mais fácil olhar para o problema do outro, talvez porque não conheço a altura do abismo do outro tão bem como conheço o meu. Em honestidade própria eu sei por onde começar.

Ilustração by Andrew Gable.